Parte II
O
nascimento de Joana
Quando
Alice sentiu aquela dor forte na zona abdominal estava longe de imaginar que,
dentro dela, começara a formar-se um novo ser. João e Alice haviam há muito
desistido da ideia de serem pais. Ela acreditava que Deus reservava-lhe muitos
planos, mas ser mãe não era um deles. Ele não acreditava em nada, simplesmente,
aceitara a situação.
Gastaram
todas as suas economias em tratamentos de fertilidade, com idas desesperadas a
Badajoz - às vezes de dois em dois dias - , injeções diárias para haver formação de mais
do que um óvulo, punções várias, com
todo o desgaste emocional que isso acarretava e com o sacrifício físico de
Alice.
O corpo
esbelto de outrora não passava de uma miragem. Estava de rastos.
Malditos
tratamentos, fizeram-na engordar na mesma proporção da sua esperança.
A meio
do processo já João tinha deixado de acreditar. Mas Alice não, até ao fim do
último tratamento acreditou sempre.
Até que
chegou o momento de parar, faltavam-lhes o dinheiro e a força para continuar.
Não acreditavam que algum dia pudessem ser pais.
Quando
nada o fazia prever, foram surpreendidos pela notícia "A senhora está
grávida!" do médico que a assistia naquele dia.
As
lágrimas que caíam continuamente pela cara de Alice salgaram-lhe a boca e ela
saboreou o momento, num misto de alegria e pânico, pois, apesar de manter
alguma jovialidade, os seus 42 anos de idade pesavam-lhe e já não se sentia tão
bem como há uns anos atrás.
João
gritou de alegria, em silêncio. No fundo, ser pai era um desejo antigo e o
facto de não o poder ser, secretamente, atentava contra a sua masculinidade.
O tempo
foi passando, a alegria de saber que iriam ter uma menina atenuou as dores de
Alice, numa gravidez de risco, onde as idas à Alfredo da Costa eram frequentes.
João andava nervoso, toda a vida se
preparara para isto, mas naquela altura parecia que vivia numa espécie de
limbo, pouco ligado à realidade.
Depois
de aconselhados a fazer a amniocentese, puseram-se a caminho de Lisboa. A
viagem não era longa mas o carro, já desgastado por tantas viagens a Espanha,
pedia reforma. O dia acordara muito cinzento e chuvoso, e as notícias da manhã
mostravam o caos que as ruas da capital se tinham transformado. Mas isso não
demoveu o casal. Saíram bem cedo de casa e lá foram. Ficaram, naturalmente,
retidos no trânsito. A trovoada e as chuvas fortes eram assustadoras e não foi
preciso ser muito perspicaz para perceber que nunca conseguiriam chegar a horas
do exame. Levada pela fúria divina daquelas águas e pelo som demoníaco da
trovoada, Alice começou a pensar se não seria melhor não fazer a amniocentese. A
espera no carro fê-la refletir sobre tudo o que se tinha passado naquelas
últimas semanas, e o medo tomou conta dela. Não queria fazer algo que pudesse
pôr em risco a vida da sua bebé. Naquele êxtase provocado pelo sono das noites
mal dormidas e pelo som dos trovões e da água, Alice tomou uma decisão:
"João, volta para casa!"
Alice
teve uma gravidez muito atribulada. As dores foram uma constante e a bebé dava
sinais de querer nascer mais cedo do que o suposto.
Decidiram
dar-lhe o nome de Joana. Ainda no ventre, Joana mostrava já a sua enorme
curiosidade e agitação. Queria ver o mundo, estar confinada a uma bolsa de
líquido era demasiado pouco para ela. Esse desejo era tão grande que, às 27
semanas de gestação, Joana decidiu vir ao mundo.
Alice
recuperava de mais uma noite mal dormida, deitada no sofá e sentiu uma dor
lancinante no ventre. Era uma dor insuportável e ela percebeu que algo de
estranho estava a acontecer. Sem demoras chamou uma ambulância e ligou ao
marido. Sentiu que chegara a hora.
Alice
recorda-se muito pouco do que aconteceu nesse dia. As dores toldaram-lhe o
raciocínio.
De
facto, Joana estava preparada para nascer e não havia nada que o pudesse
impedir. Raio da miúda, até no nascimento mostrou o seu temperamento. A verdade
é que, com 27 semanas de gestação, Joana e Alice tiveram que lutar pela vida.
Alice
estava em pânico, ninguém a preparara para as dores que estava a sentir. As
contrações sucediam-se e ela fazia como nos filmes - ar dentro, ar fora, ar
dentro, ar fora - porque não tivera tempo de ir às aulas de preparação para o parto.
De uma forma muito descontrolada lá conseguia respirar, mas gemia com cada
inspiração que fazia.
A hora
aproximava-se, o médico não conseguia disfarçar o seu nervosismo e sussurrava
às enfermeiras que o foco estava a desaparecer, ao mesmo tempo que lhe
escorriam gotas de suor na testa.
Alice
estava anestesiada pela dor, olhou para o lado ao mesmo tempo que João era
empurrado porta fora da sala de partos, e num assombro de força interior,
segurou-se ao ferros que limitavam a marquesa e puxou-os com tanta força,
naquele último esforço, naquele tudo-ou-nada que só uma mãe entende, que os
seus braços enegreceram de dor.
Fizera
tudo... tudo!
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