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terça-feira, 13 de setembro de 2016

Parte II

O nascimento de Joana
Quando Alice sentiu aquela dor forte na zona abdominal estava longe de imaginar que, dentro dela, começara a formar-se um novo ser. João e Alice haviam há muito desistido da ideia de serem pais. Ela acreditava que Deus reservava-lhe muitos planos, mas ser mãe não era um deles. Ele não acreditava em nada, simplesmente, aceitara a situação.
Gastaram todas as suas economias em tratamentos de fertilidade, com idas desesperadas a Badajoz - às vezes de dois em dois dias - ,  injeções diárias para haver formação de mais do que um óvulo, punções várias,  com todo o desgaste emocional que isso acarretava e com o sacrifício físico de Alice.
O corpo esbelto de outrora não passava de uma miragem. Estava de rastos.
Malditos tratamentos, fizeram-na engordar na mesma proporção da sua esperança.
A meio do processo já João tinha deixado de acreditar. Mas Alice não, até ao fim do último tratamento acreditou sempre.
Até que chegou o momento de parar, faltavam-lhes o dinheiro e a força para continuar. Não acreditavam que algum dia pudessem ser pais.
Quando nada o fazia prever, foram surpreendidos pela notícia "A senhora está grávida!" do médico que a assistia naquele dia.
As lágrimas que caíam continuamente pela cara de Alice salgaram-lhe a boca e ela saboreou o momento, num misto de alegria e pânico, pois, apesar de manter alguma jovialidade, os seus 42 anos de idade pesavam-lhe e já não se sentia tão bem como há uns anos atrás.
João gritou de alegria, em silêncio. No fundo, ser pai era um desejo antigo e o facto de não o poder ser, secretamente, atentava contra a sua masculinidade.
O tempo foi passando, a alegria de saber que iriam ter uma menina atenuou as dores de Alice, numa gravidez de risco, onde as idas à Alfredo da Costa eram frequentes.  João andava nervoso, toda a vida se preparara para isto, mas naquela altura parecia que vivia numa espécie de limbo, pouco ligado à realidade.
Depois de aconselhados a fazer a amniocentese, puseram-se a caminho de Lisboa. A viagem não era longa mas o carro, já desgastado por tantas viagens a Espanha, pedia reforma. O dia acordara muito cinzento e chuvoso, e as notícias da manhã mostravam o caos que as ruas da capital se tinham transformado. Mas isso não demoveu o casal. Saíram bem cedo de casa e lá foram. Ficaram, naturalmente, retidos no trânsito. A trovoada e as chuvas fortes eram assustadoras e não foi preciso ser muito perspicaz para perceber que nunca conseguiriam chegar a horas do exame. Levada pela fúria divina daquelas águas e pelo som demoníaco da trovoada, Alice começou a pensar se não seria melhor não fazer a amniocentese. A espera no carro fê-la refletir sobre tudo o que se tinha passado naquelas últimas semanas, e o medo tomou conta dela. Não queria fazer algo que pudesse pôr em risco a vida da sua bebé. Naquele êxtase provocado pelo sono das noites mal dormidas e pelo som dos trovões e da água, Alice tomou uma decisão: "João, volta para casa!"
Alice teve uma gravidez muito atribulada. As dores foram uma constante e a bebé dava sinais de querer nascer mais cedo do que o suposto.
Decidiram dar-lhe o nome de Joana. Ainda no ventre, Joana mostrava já a sua enorme curiosidade e agitação. Queria ver o mundo, estar confinada a uma bolsa de líquido era demasiado pouco para ela. Esse desejo era tão grande que, às 27 semanas de gestação, Joana decidiu vir ao mundo.
Alice recuperava de mais uma noite mal dormida, deitada no sofá e sentiu uma dor lancinante no ventre. Era uma dor insuportável e ela percebeu que algo de estranho estava a acontecer. Sem demoras chamou uma ambulância e ligou ao marido. Sentiu que chegara a hora.
Alice recorda-se muito pouco do que aconteceu nesse dia. As dores toldaram-lhe o raciocínio.
De facto, Joana estava preparada para nascer e não havia nada que o pudesse impedir. Raio da miúda, até no nascimento mostrou o seu temperamento. A verdade é que, com 27 semanas de gestação, Joana e Alice tiveram que lutar pela vida.
Alice estava em pânico, ninguém a preparara para as dores que estava a sentir. As contrações sucediam-se e ela fazia como nos filmes - ar dentro, ar fora, ar dentro, ar fora - porque não tivera tempo de ir às aulas de preparação para o parto. De uma forma muito descontrolada lá conseguia respirar, mas gemia com cada inspiração que fazia.
A hora aproximava-se, o médico não conseguia disfarçar o seu nervosismo e sussurrava às enfermeiras que o foco estava a desaparecer, ao mesmo tempo que lhe escorriam gotas de suor na testa.
Alice estava anestesiada pela dor, olhou para o lado ao mesmo tempo que João era empurrado porta fora da sala de partos, e num assombro de força interior, segurou-se ao ferros que limitavam a marquesa e puxou-os com tanta força, naquele último esforço, naquele tudo-ou-nada que só uma mãe entende, que os seus braços enegreceram de dor.

Fizera tudo... tudo!

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