Pretendo partilhar as minhas experiências como professor de Educação Especial do domínio visual e como responsável pela área de Orientação e Mobilidade do Gabinete de Apoio à Deficiência Visual do Concelho de Torres Vedras (GADV). A história da 'Joana' será um dos temas fortes desta página. Conheça a história emocionante da querida Joana que, num piscar de olhos, perdeu a visão e todo o seu mundo teve que ser reinventado.
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quarta-feira, 28 de setembro de 2016
O que é que um cego vê?
Será que vê tudo escuro? A maior parte das pessoas acha que sim.
Será que vê tudo claro? Há casos em que sim, vê uma luz branca muito forte.
Será que vê cores? Há relatos de cegos que vêm uma mistura de vários tons.
Há ainda quem não veja rigorosamente nada.
Há doenças que impedem que a informação visual chegue ao córtex cerebral, pelo que esta ausência torne impossível 'visualizar' o que quer que seja.
Este é uma área muito interessante por explorar. Voltarei a este assunto brevemente, mas entretanto, deixo-vos um texto do prof. Hélder Bértolo, com quem já tive o prazer de privar e que tem feito investigação nesta área. Para além disto, apresenta também alguns dados sobre o sonho dos cegos.
Deixo o teaser: Se um cego (congénito) nunca viu, que imagens surgem nos seus sonhos?
Veja aqui.
segunda-feira, 26 de setembro de 2016
Trabalhando a autonomia.
A autonomia de uma pessoa com deficiência visual (DV) é das coisas mais importantes e das que dá mais satisfação em se trabalhar.
Ainda a propósito dos últimos textos que publiquei, sobre o estigma, um dos maiores estigmas que existem em relação à pessoa com DV é o de que ela é pouco autónoma e de que a falta de visão compromete a deslocação entre locais.
As aulas de Orientação e Mobilidade servem para acabarmos de vez com este estigma. Pomo-lo no bolso e depois deitamo-lo fora.
Para além de se aprender as técnicas de guia e de utilização da bengala branca (que noutro post irei abordar com maior atenção), estas aulas servem também para aumentar a autonomia da pessoa. Conseguir deslocar-se do ponto A ao ponto B em total segurança é o objetivo principal.
Hoje foi um dia particularmente feliz em relação a este assunto.
Ver a expressão da cara da B. ao conseguir, praticamente sem ajuda, sair da escola (zona de conforto), ir pelo passeio e chegar ao ATL. O caminho não é longo, mas tem alguns obstáculos, que foram ultrapassados com destreza e confiança.
A razão desse sucesso assenta principalmente em quatro fatores, a capacidade de orientação, e a força de vontade da pessoa com DV e a forma como o técnico de orientação ensina a técnica adequada a cada situação e a calma e a segurança que transmite a quem aprende.
Outro fator muito importante é a ausência de paternalismos. Sejamos francos, o mundo não é cor de rosa, nem se vai adaptar às pessoas com DV. São eles que têm de se munir com as ferramentas para o enfrentar e têm que ultrapassar os seus medos e as suas angústias.
Cada dia é uma vitória, cada percurso feito uma batalha ganha. Sabendo que no dia seguinte novas batalhas virão e só os mais preparados estarão prontos para a vencer.
O meu trabalho é colocá-los nas mais diversas situações e mostrar como sair delas. O resto virá com a sua atitude, a sua destreza e a forma como querem encarar o mundo.
Querem isolar-se e entrar no ciclo de vitimização que não leva a lado nenhum, ou preferem enfrentar o mundo e sair de cabeça erguida, com toda a dignidade que merecem, sabendo que vão passar dificuldades, mas também sabendo que irão ultrapassar as mesmas?
Brevemente algumas notas sobre o treino da bengala e técnicas de guia.
FMM
domingo, 25 de setembro de 2016
Estigma (Parte II)
Um dos perigos que o estigma pode trazer é a falta de interação social.
O indivíduo estigmatizado tende a autoisolar-se e poder-se-á tornar uma pessoa
desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e confusa.
Quando a interação se dá, porém, é quando as causas e os efeitos do
estigma estão presentes. Neste caso o indivíduo estigmatizado poderá ter a
sensação de não saber aquilo que os outros realmente pensam dele.
No caso da pessoa cega há muitos exemplos desta situação. O estigma que
as pessoas muitas vezes têm para com o indivíduo com cegueira leva-os a terem
reações e atos que só uma pessoa com uma grande aceitação e autoestima poderá
suportar. Já alguns alunos meus se referiram ao facto de um grande número de
pessoas se dirigirem a eles falando muito alto, como se eles tivessem problemas
auditivos; ou mesmo mostrarem espanto por eles falarem.
Para os indivíduos ‘normais’ o que seria um ato perfeitamente
expectável de outra pessoa, torna-se um feito extraordinário se for realizado
por uma pessoa portadora de deficiência.
Uma das formas que os indivíduos estigmatizados encontraram para
ultrapassar alguns dos constrangimentos já referidos é na procura de grupos de
ajuda mútua. Estes grupos consistem em pequenos grupos sociais, normalmente dirigidos
por um representante com o mesmo estigma. Para além dos encontros, estes grupos
promovem também palestras que contam com oradores, considerados bem adaptados e
socialmente aceites. Estes representam a sua categoria. Esta categorização é o
grupo em si.
Depois de nos referirmos à forma como o estigmatizado interage com o
‘normal’, Erving Goffman lança o conceito de ‘informados’. Os ‘informados’
prestam apoio aos estigmatizados, uma vez que estão bem cientes da sua
problemática. O estigmatizado pode agir sem defesas perante os ‘informados’,
sem se envergonharem e sem autocontrolo. Os médicos, enfermeiros, terapeutas e
professores são exemplos de pessoas ‘informadas’. Também os que se relacionam
com o estigmatizado através da estrutura social (exemplo da mulher de uma
pessoa cega) são considerados ‘informados’.
Segundo Goffman (1982) existem quatro modelos de socialização:
. estigma congénito – refere-se a pessoas socializadas dentro da sua
situação de desvantagem, mesmo quando estão aprendendo e incorporando os
padrões frente aos quais fracassam.
. capacidade de uma família se constituir numa cápsula protetora para o
seu jovem membro. O jovem sente-se protegido, há controle de informação e o
estigma aparece normalmente aquando da entrada no ensino público.
No caso de um cego congénito, este só saberá que não encaixa nos
padrões ditos ‘normais’ numa fase posterior da sua vida.
"Creio
que a primeira vez que realmente me dei conta de minha situação e a primeira
dor profunda que ela me causou foi num dia, casualmente, quando estava na praia
com o meu grupo de amigos do início da adolescência. Eu estava deitada na areia
e acho que os rapazes e moças pensaram que eu estivesse dormindo. Um deles
disse, então: 'Gosto muito de Domenica, mas nunca sairia com uma garota cega.'
Não conheço nenhum preconceito que rejeite uma pessoa de maneira tão absoluta”.
(in Estigma: Notas sobre a
manipulação da Identidade Deteriorada, Goffman,1982, Brasil, Zahar Editores, p.
31)
. os indivíduos tornam-se estigmatizados numa fase avançada da vida.
Neste caso estes têm dificuldade em se identificarem e tendem a
autocensurarem-se.
Aquando da minha experiência como monitor de uma colónia de férias para
alunos com deficiência visual da Direção Regional de Educação de Lisboa e
utentes do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, pude conhecer
adultos com cegueira recém-adquirida que afirmaram que passaram cerca de um ano
em ‘luto’, onde parecia que a vida deles tinha acabado. Passado esse ano
iniciaram um processo de reabilitação e ‘(re)aprenderam’ a viver. A partir do momento em que conseguiram
aceitar a sua nova ‘categorização’, a sua nova identidade, puderam iniciar um
percurso de reabilitação de inclusão na sociedade de forma bem sucedida.
. indivíduos que inicialmente são socializados numa comunidade
diferente, dentro ou fora das fronteiras geográficas da sociedade normal, e que
devem aprender uma segunda maneira de ser, ou melhor, aquela que as pessoas à
sua volta consideram real e válida.
Para o estigmatizado há dois tipos de relacionamento. Se encontra novos
relacionamentos, estes vão vê-lo com os ‘defeitos’ que tem, em termos do que é
expectável. Nos relacionamentos antigos, há uma ligação à conceção anterior
daquilo que foi, e os indivíduos poderão não conseguir tratá-lo nem de uma
forma neutra, formal, nem com uma aceitação total.
Tendo como assente que é muito importante a interação social entre
estigmatizados e ‘normais’, a interação estigmatizado-estigmatizado também é
muito importante, desde que não seja motivo de segregação.
O caminho certo está na inclusão das pessoas portadoras de deficiência
visual na sociedade, admitindo contactos frequentes com pessoas com a mesma
situação, mas não de forma exclusiva.
Não somos todos potenciais estigmatizados? Não damos constantes informações
sociais aos que nos rodeiam?
FMM
sexta-feira, 23 de setembro de 2016
Estigma (Parte I)
Quando
ouvimos a palavra ‘estigma’ algo de negativo assalta-nos a mente, é uma palavra
que acompanha a pessoa com deficiência, seja qual for.
Podemos
ligá-la com outras: por exemplo, ‘identidade social’.
Quem
sou eu? Onde me insiro? Qual o meu papel na sociedade? Como é que os outros me
vêem? Como é que eu me vejo?
Temos
que parar, as perguntas jorram e há que estancá-las.
Comecemos
pelo conceito, os Gregos criaram este termo para se referirem a sinais
corporais que não eram mais que evidências de algo extraordinário ou algo
negativo sobre o status social vigente.
Hoje
em dia o conceito mantém-se, apesar de não se dar ênfase à marca corporal, mas
sim ao ‘problema’ que a pessoa tem.
A
sociedade, tão marcada pelo individualismo, tende a categorizar os indivíduos,
estabelecendo padrões comportamentais e atributos tidos como naturais dos
membros dessa categoria. Trata-se da identidade social.
Erving
Goffman (1982) fala-nos de dois tipos de identidade: a identidade social real e
a identidade social virtual. A identidade social virtual é aquilo que esperamos
de um determinado indivíduo dentro de um dado contexto; a identidade social
real é aquilo que o mesmo indivíduo prova possuir. Quando há diferença entre as
duas aparece o estigma, que traz conceitos de defeito, fraqueza e desvantagem.
O
indivíduo é, assim, colocado numa nova categoria.
Existem
três tipos de Estigma:
.
deformidades físicas;
.
culpas de carácter individual;
.
tribais de raça, nação e religião.
No
primeiro tipo, o estigma é devido a aparência física, com alterações daquilo
que é considerado ‘normal’.
No
segundo, o estigma é devido a questões de crença pessoal, de diversa ordem.
No
terceiro, o estigma está assente na raça, nação e religião de um indivíduo.
Espera-se um determinado comportamento conforme as situações acima citadas.
No
que diz respeito à deficiência o estigma está centrado nas imperfeições, na
diferença. No entanto, por vezes, e por razões históricas, atribui-se à
deficiência aspetos sobrenaturais, como no caso das pessoas cegas. Observemos o
caso apresentado por Goffman (1982):
“Alguns podem
hesitar em tocar ou guiar o cego, enquanto que outros generalizam a deficiência
de visão sob a forma de uma gestalt de incapacidade, de tal modo que o
indivíduo grita com o cego como se ele fosse surdo ou tenta erguê-lo como se
ele fosse aleijado. Aqueles que estão diante de um cego podem ter uma gama
enorme de crenças ligadas ao estereótipo. Por exemplo, podem pensar que estão
sujeitos a um tipo único de avaliação, supondo ou o indivíduo cego recorre a
canais específicos de informação não disponíveis para os outros.” (in Estigma:
Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada, 1982, Brasil, Zahar
Editores, p.8)
Concluimos, então, que um indivíduo
que não preencha tudo o que dele se espera, que fuja da ‘norma’ socialmente
estabelecida, é um indivíduo estigmatizado.
Uma das características mais
notórias no indivíduo estigmatizado é a necessidade de ser aceite. Essa
necessidade leva-o a tentar corrigir essa ‘falha’. Goffman (1982) fala-nos em
“Vitimização”.
O indivíduo estigmatizado vai tentar
ultrapassar obstáculos que eram considerados inultrapassáveis para pessoas com
a sua problemática. Por outro lado poderá utilizar o estigma como desculpa para
eventuais fracassos.
É possível verificar que há muitas
formas de se lidar com o estigma. Há outros indivíduos que vêem no seu
sofrimento como que uma bênção secreta, na qual a sua experiência poderá servir
como ajuda e ensinamento a outras pessoas.
Goffman escreve:
"Isso
levaria imediatamente a se pensar que há muitos acontecimentos que podem
diminuir a satisfação de viver de maneira muito mais efetiva do que a cegueira.
Esse pensamento é inteiramente saudável. Desse ponto de vista, podemos
perceber, por exemplo, que um defeito como a incapacidade de aceitar amor
humano, que pode diminuir o prazer de viver até quase esgotá-lo, é muito mais
trágico do que a cegueira. Mas é pouco comum que o homem com tal doença chegue
a aperceber-se dela e, portanto, a ter pena de si mesmo." (in
Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada, 1982, Brasil,
Zahar Editores, p. 13)
Este episódio lembra-me algo que um ex-aluno cego me disse,
referindo-se a questões de relacionamentos, de amizade e amorosos. Ele disse-me
que, ao contrário de quase todos os seus amigos, ele não ligava ao aspeto
físico das pessoas e que dava realmente importância aquilo que as pessoas eram,
na sua essência, no seu interior e não na sua aparência exterior.
Este é um exemplo em como uma aparente limitação, vista aos olhos
daquilo que a sociedade tem como padrão, se torna uma vantagem.
FMM
quinta-feira, 15 de setembro de 2016
A bondade aos olhos de quem não vê...
No outro dia, no GADV, numa das muitas conversas que vou tendo com os utentes do gabinete, onde se partilham as alegrias e as angústias, o sr. A.B.(baixa visão grave) quando se referia ao facto de agora já não ver tão bem como antigamente e numa perspectiva de acentuar os aspetivos positivos da situação, minimizando os negativos, disse o seguinte:
"Agora vejo melhor a bondade humana, que antes me passava despercebida. Perdi umas coisas, mas ganhei outras."
Está aqui a prova de que a famosa frase de Saint Exúpery n' O Principezinho não é só uma 'frase feita' que repetimos muitas vezes ao enjoo nas redes sociais. Ela acarreta algo de muito verdadeiro e merece uma reflexão.
Vamos fazê-la? Feche os olhos e veja o essencial.
No outro dia, no GADV, numa das muitas conversas que vou tendo com os utentes do gabinete, onde se partilham as alegrias e as angústias, o sr. A.B.(baixa visão grave) quando se referia ao facto de agora já não ver tão bem como antigamente e numa perspectiva de acentuar os aspetivos positivos da situação, minimizando os negativos, disse o seguinte:
"Agora vejo melhor a bondade humana, que antes me passava despercebida. Perdi umas coisas, mas ganhei outras."
Está aqui a prova de que a famosa frase de Saint Exúpery n' O Principezinho não é só uma 'frase feita' que repetimos muitas vezes ao enjoo nas redes sociais. Ela acarreta algo de muito verdadeiro e merece uma reflexão.
Vamos fazê-la? Feche os olhos e veja o essencial.
FMM
quarta-feira, 14 de setembro de 2016
A minha história...
Fernando Miguel Martins é natural de Torres Vedras, nasceu no dia 29 de setembro de 1974. Licenciado em Ensino de Inglês e Alemão pela Universidade de Aveiro, começou a dar um novo rumo à sua vida profissional há cerca de 10 anos começando o seu trabalho no apoio a crianças e jovens com deficiência visual. Frequentou ações de formação neste âmbito, nomeadamente na grafia braille e na orientação e mobilidade; fez um curso de Educação Especial (visão) na Escola Superior de Educação de Setúbal; foi monitor da colónia de férias para utentes do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos e alunos da Direção Regional de Educação de Lisboa. Em 2011 tirou uma pós-graduação em Educação Especial (domínio visual) no Instituto Piaget de Almada, onde, como projeto final, idealizou o Gabinete de Apoio à Deficiência Visual do concelho de Torres Vedras (GADV) que, apresentado à Câmara Municipal de Torres Vedras, tem estado em atividade desde então, prestando apoio a cerca de 30 utentes. Atualmente é professor de Educação Especial, no domínio visual, do Agrupamento de Escolas Padre Vítor Melícias e participa ativamente nas atividades do GADV, sendo o responsável pela área da Orientação e Mobilidade. No seu ‘Num piscar d' olhos…’ propõe-nos uma viagem pelo mundo, nem sempre compreendido, da deficiência visual, onde serão abordados temas como o estigma, a mobilidade, o sentimento e o luto, a sobrevivência, o mundo do trabalho, os relacionamentos, a perda de visão e os problemas visuais.
Fernando Miguel Martins é natural de Torres Vedras, nasceu no dia 29 de setembro de 1974. Licenciado em Ensino de Inglês e Alemão pela Universidade de Aveiro, começou a dar um novo rumo à sua vida profissional há cerca de 10 anos começando o seu trabalho no apoio a crianças e jovens com deficiência visual. Frequentou ações de formação neste âmbito, nomeadamente na grafia braille e na orientação e mobilidade; fez um curso de Educação Especial (visão) na Escola Superior de Educação de Setúbal; foi monitor da colónia de férias para utentes do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos e alunos da Direção Regional de Educação de Lisboa. Em 2011 tirou uma pós-graduação em Educação Especial (domínio visual) no Instituto Piaget de Almada, onde, como projeto final, idealizou o Gabinete de Apoio à Deficiência Visual do concelho de Torres Vedras (GADV) que, apresentado à Câmara Municipal de Torres Vedras, tem estado em atividade desde então, prestando apoio a cerca de 30 utentes. Atualmente é professor de Educação Especial, no domínio visual, do Agrupamento de Escolas Padre Vítor Melícias e participa ativamente nas atividades do GADV, sendo o responsável pela área da Orientação e Mobilidade. No seu ‘Num piscar d' olhos…’ propõe-nos uma viagem pelo mundo, nem sempre compreendido, da deficiência visual, onde serão abordados temas como o estigma, a mobilidade, o sentimento e o luto, a sobrevivência, o mundo do trabalho, os relacionamentos, a perda de visão e os problemas visuais.
Em Lisboa está a trabalhar-se muito bem nas questões da mobilidade e acessibilidade.
É um excelente exemplo daquilo que deve ser feito e uma lição para o resto do país.
Os técnicos da Câmara Municipal de Torres Vedras já reuniram com os seus homólogos de Lisboa e esperamos com entusiasmo o resultado desse encontro.
As coisas vão ter que mudar.
As pessoas com mobilidade reduzida merecem ter acesso às passadeiras e aos locais públicos e esse acesso tem que ser feito em segurança.
Acompanhe o trabalho da Câmara Municipal de Lisboa aqui:
https://www.facebook.com/acessibilidadepedonal/?fref=ts
É um excelente exemplo daquilo que deve ser feito e uma lição para o resto do país.
Os técnicos da Câmara Municipal de Torres Vedras já reuniram com os seus homólogos de Lisboa e esperamos com entusiasmo o resultado desse encontro.
As coisas vão ter que mudar.
As pessoas com mobilidade reduzida merecem ter acesso às passadeiras e aos locais públicos e esse acesso tem que ser feito em segurança.
Acompanhe o trabalho da Câmara Municipal de Lisboa aqui:
https://www.facebook.com/acessibilidadepedonal/?fref=ts
terça-feira, 13 de setembro de 2016
Parte III
O
primeiro dia de Joana
O
coração batia a mil à hora. João estava num estado tal que pensou que ia
desmaiar ali, sozinho naquele corredor do hospital, enquanto desesperava por
notícias do outro lado da porta. Tinha sonhado tanto com aquele momento, mas
nada do que sonhara estava a acontecer.
O
silêncio que vinha da sala de partos era difícil de suportar.
Só
queria ouvir o choro da Joana, imaginava-a a ser colocada junto aos seios da
mãe e a depois a acalmar-se naquele reconhecimento mútuo, na partilha dos cheiros,
na doce melodia da voz materna. Mas não havia choro, não havia nada, só a
angústia solitária de um pai à espera de notícias.
Quando
a porta finalmente se abriu, reconheceu de imediato o médico com quem já tantas
vezes se havia cruzado, mas a elegância, a calma, as mãos incrivelmente limpas
e delicadas que sempre apresentara não passava de uma miragem. O médico estava
visivelmente cansado, trazia um lenço ensopado na mão direita com o qual
tentava limpar algumas gotas de suor que teimosamente nasciam no meio da sua
testa. Não disse uma palavra, suspirou apenas, mas João percebeu que era um
suspiro de alívio, de quem tinha vencido uma batalha. Num ápice, precipitou-se
sobre a porta e espreitou e viu Alice prostrada na marquesa, também ela perdera
aquele brilho que só as mulheres grávidas têm.
João
procurou na cara de Alice algo que o pudesse animar.
Onde
estaria Joana? Porque não ouvira qualquer choro?
Joana
repousava tranquilamente na incubadora. Nascera demasiado cedo para conseguir
suportar sozinha a vida dura e desprotegida fora do ventre.
Ambas
estavam relativamente bem. Alice recuperava das dores e ansiava por ver Joana.
Nem sabia muito bem o que tinha acontecido. No meio de toda aquela confusão,
dores lancinantes, médicos e enfermeiros à sua volta, nem deu bem conta do que
tinha acontecido. As dores anestesiaram-lhe os pensamentos e foi impossível ter
qualquer laivo de lucidez nas horas anteriores ao nascimento de Joana.
A
menina-um-quilo-de-gente estava deitada na incubadora, precisava desse ambiente
controlado. Com tão pouco tempo de gestação era importante manter os níveis de
temperatura e humidade semelhantes ao que tinha na barriga da mãe. No fundo, o
seu cérebro, os músculos, os pulmões ainda não tinham chegado à maturação
necessária.
Quando
Alice finalmente pôde levantar-se, apressou-se para ver a sua filha. A primeira
memória que tem de Joana foi a de ver uma mão minúscula a segurar o dedo
mindinho do pai que, emocionado, tinha encostado a sua cabeça ao cubículo para
estar o mais próximo possível da sua menina. Alice estava tão cansada que nem
tinha força para chorar, embora lhe apetecesse tanto, mas tanto. Aproximou-se
de João, segurou-lhe a mão e ficou a olhar para aquele milagre da vida.
João e
Alice sabiam que os meses seguintes seriam complicados e que Joana poderia vir
a ter graves problemas de saúde, mas naquele momento nada disso interessava,
era a sua menina que estava ali, à sua frente, era a corajosa Joana que quisera
nascer, assim, muito antes do tempo previsto.
Apesar
do sofrimento a que foi sujeita, os tubos que a alimentava, o mundo hostil que
encontrara, Joana esboçava um sorriso traquina. Esse sorriso iria acompanhá-la
sempre, todos os dias da sua vida, mesmo naqueles em que ela teria todos os
motivos para não o fazer.
A sua
força de viver e o seu sorriso contagiante haveriam de ser essenciais para
suportar tudo aquilo que a pequena Joana teve que passar.
A prematuridade
trouxera problemas com os quais teve que viver todos os segundos da sua vida.
Da sua
vida tão difícil.
Parte II
O
nascimento de Joana
Quando
Alice sentiu aquela dor forte na zona abdominal estava longe de imaginar que,
dentro dela, começara a formar-se um novo ser. João e Alice haviam há muito
desistido da ideia de serem pais. Ela acreditava que Deus reservava-lhe muitos
planos, mas ser mãe não era um deles. Ele não acreditava em nada, simplesmente,
aceitara a situação.
Gastaram
todas as suas economias em tratamentos de fertilidade, com idas desesperadas a
Badajoz - às vezes de dois em dois dias - , injeções diárias para haver formação de mais
do que um óvulo, punções várias, com
todo o desgaste emocional que isso acarretava e com o sacrifício físico de
Alice.
O corpo
esbelto de outrora não passava de uma miragem. Estava de rastos.
Malditos
tratamentos, fizeram-na engordar na mesma proporção da sua esperança.
A meio
do processo já João tinha deixado de acreditar. Mas Alice não, até ao fim do
último tratamento acreditou sempre.
Até que
chegou o momento de parar, faltavam-lhes o dinheiro e a força para continuar.
Não acreditavam que algum dia pudessem ser pais.
Quando
nada o fazia prever, foram surpreendidos pela notícia "A senhora está
grávida!" do médico que a assistia naquele dia.
As
lágrimas que caíam continuamente pela cara de Alice salgaram-lhe a boca e ela
saboreou o momento, num misto de alegria e pânico, pois, apesar de manter
alguma jovialidade, os seus 42 anos de idade pesavam-lhe e já não se sentia tão
bem como há uns anos atrás.
João
gritou de alegria, em silêncio. No fundo, ser pai era um desejo antigo e o
facto de não o poder ser, secretamente, atentava contra a sua masculinidade.
O tempo
foi passando, a alegria de saber que iriam ter uma menina atenuou as dores de
Alice, numa gravidez de risco, onde as idas à Alfredo da Costa eram frequentes.
João andava nervoso, toda a vida se
preparara para isto, mas naquela altura parecia que vivia numa espécie de
limbo, pouco ligado à realidade.
Depois
de aconselhados a fazer a amniocentese, puseram-se a caminho de Lisboa. A
viagem não era longa mas o carro, já desgastado por tantas viagens a Espanha,
pedia reforma. O dia acordara muito cinzento e chuvoso, e as notícias da manhã
mostravam o caos que as ruas da capital se tinham transformado. Mas isso não
demoveu o casal. Saíram bem cedo de casa e lá foram. Ficaram, naturalmente,
retidos no trânsito. A trovoada e as chuvas fortes eram assustadoras e não foi
preciso ser muito perspicaz para perceber que nunca conseguiriam chegar a horas
do exame. Levada pela fúria divina daquelas águas e pelo som demoníaco da
trovoada, Alice começou a pensar se não seria melhor não fazer a amniocentese. A
espera no carro fê-la refletir sobre tudo o que se tinha passado naquelas
últimas semanas, e o medo tomou conta dela. Não queria fazer algo que pudesse
pôr em risco a vida da sua bebé. Naquele êxtase provocado pelo sono das noites
mal dormidas e pelo som dos trovões e da água, Alice tomou uma decisão:
"João, volta para casa!"
Alice
teve uma gravidez muito atribulada. As dores foram uma constante e a bebé dava
sinais de querer nascer mais cedo do que o suposto.
Decidiram
dar-lhe o nome de Joana. Ainda no ventre, Joana mostrava já a sua enorme
curiosidade e agitação. Queria ver o mundo, estar confinada a uma bolsa de
líquido era demasiado pouco para ela. Esse desejo era tão grande que, às 27
semanas de gestação, Joana decidiu vir ao mundo.
Alice
recuperava de mais uma noite mal dormida, deitada no sofá e sentiu uma dor
lancinante no ventre. Era uma dor insuportável e ela percebeu que algo de
estranho estava a acontecer. Sem demoras chamou uma ambulância e ligou ao
marido. Sentiu que chegara a hora.
Alice
recorda-se muito pouco do que aconteceu nesse dia. As dores toldaram-lhe o
raciocínio.
De
facto, Joana estava preparada para nascer e não havia nada que o pudesse
impedir. Raio da miúda, até no nascimento mostrou o seu temperamento. A verdade
é que, com 27 semanas de gestação, Joana e Alice tiveram que lutar pela vida.
Alice
estava em pânico, ninguém a preparara para as dores que estava a sentir. As
contrações sucediam-se e ela fazia como nos filmes - ar dentro, ar fora, ar
dentro, ar fora - porque não tivera tempo de ir às aulas de preparação para o parto.
De uma forma muito descontrolada lá conseguia respirar, mas gemia com cada
inspiração que fazia.
A hora
aproximava-se, o médico não conseguia disfarçar o seu nervosismo e sussurrava
às enfermeiras que o foco estava a desaparecer, ao mesmo tempo que lhe
escorriam gotas de suor na testa.
Alice
estava anestesiada pela dor, olhou para o lado ao mesmo tempo que João era
empurrado porta fora da sala de partos, e num assombro de força interior,
segurou-se ao ferros que limitavam a marquesa e puxou-os com tanta força,
naquele último esforço, naquele tudo-ou-nada que só uma mãe entende, que os
seus braços enegreceram de dor.
Fizera
tudo... tudo!
Aquele seria o último pôr do sol que iria ver no resto da sua vida...
Parte I
Aquele seria o último pôr do sol que iria ver no resto da
sua vida...
Quando Joana acordou em sobressalto, procurando
exasperadamente pelos seus óculos, esquecendo-se por completo de onde os havia
posto, sentiu que algo não estava bem. A névoa que sempre lhe cobrira os olhos
adensara-se e, por muito que ela tentasse, não estava a conseguir ver como no
dia anterior. Abriu e fechou os olhos, num movimento rápido, na esperança de
que, na vez seguinte, se dissipasse aquela cortina.
Continuava sem saber dos óculos. Deambulou ébria pelo quarto,
tropeçando aqui e ali. O espaço que conhecia de olhos fechados era-lhe estranho
naquele momento, a ansiedade tomava conta do seu peito e a respiração era tão
veloz que conseguia ouvir cada batida do seu coração.
Precisava de se acalmar, calma... calma... toda a sua
vida fora passada de médico em médico, em busca de respostas. O que lhe faltava
de visão sobrava-lhe em perceção e intuição. Mas havia algo de diferente desta vez.
O seu corpo começou a tremer. Aquilo por que sempre
receara toda a vida acabara de acontecer: estava cega. CEGA! E agora?
Muitas imagens e palavras passavam pela sua cabeça. Era o
"A sua visão está a piorar de dia para dia" do médico; era o
"Vamos filha, não há-de ser nada. Deus vai ajudar-te. Confia." da
mãe; era o "A bengala é um instrumento essencial para quem não vê. Pega-se
desta forma." do técnico de orientação e mobilidade; era o "Tu és
forte. Nada te vai abalar." dos amigos. Era tudo e mais alguma coisa e não
era nada.
Mas, o que sabiam eles?
Quem eram eles para sequer imaginar o que ela estava a
sentir?
Começou a formar-se um grito tão grande dentro de si, de
tamanho tal, que nem um murmúrio lhe saiu.
Joana sentia que a sua vida acabara ali, naquele quarto,
sozinha. No fundo ela sabia que este dia acabaria por chegar, mas a esperança
de que, um tratamento inovador, uma nova descoberta ou um milagre tecnológico, pudessem
descobrir um tratamento para os seus olhos,
permitiam que se mantivesse confiante. Essa ideia acompanhou-a desde sempre,
desde que se lembra de pensar.
Toda a sua luta, as dezenas de consultas e tratamentos,
as injeções dolorosas, tudo, pareciam cair por terra naquele momento.
Aquele embate (des)esperado com a realidade veio revelar
que Joana não era aquela pessoa forte que todos pensavam conhecer. No fundo,
naquele momento, sentia-se fraca, mal conseguia respirar e o seu corpo teimava
em não se manter de pé. Perdera todas as suas forças.
A custo saiu da cama no dia seguinte, abriu todas as
portas e janelas e o som da natureza entrou avidamente pela casa toda. Fez-lhe
bem. O sol nascera outra vez e os raios que incidiam na sua cara ruborizaram-na
e aquele calor confortou-a de uma maneira que não sabe explicar.
Queria esquecer tudo o que se tinha passado no dia
anterior. Num piscar de olhos a sua vida mudara e uma pergunta assombrava-lhe a
cabeça, como uma insónia incessante: E agora?
As respostas chegavam-lhe de todos os lados, mas Joana
não acreditava numa única delas. Era demasiado perspicaz para perceber que tudo
o que ouvia não passava de frases feitas de circunstância, piedade fútil, estereótipos,
promessas de cura, incompreensões, maldades e incertezas.
A resposta só podia estar num único lugar, num sítio que
só ela podia encontrar, sem mapa, sem chaves nem 'abre-te sésamos'. Começou a
imaginá-lo, um local lindo, muito verde, junto ao mar, com caminhos estreitos e
árvores que escondem segredos, onde os carros não passam e as pegadas na terra
são difíceis de encontrar. Esse caminho levava Joana ao local onde tinha visto
o pôr do sol pela última vez. Era a sua última memória visual. Lembrava-se
também de sentir o calor na sua face e a pele a ficar mais fresca à mesma
velocidade que o sol adormecia na linha do horizonte. Deixou-se ficar nesse
pensamento, talvez uns minutos, talvez uma eternidade.
As respostas às suas perguntas haviam de estar por ali,
naquele lugar dentro de si, nos seus pensamentos, na sua força, na sua vontade
de fazer aquilo que parecia impossível até ser feito. Ela nunca deixou de
procurar os seus óculos.
São assim os grandes Homens. É assim a Joana.
A história da Joana não é real, mas não podia ser mais
verdadeira.
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