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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O que é que um cego vê?



Será que vê tudo escuro? A maior parte das pessoas acha que sim.
Será que vê tudo claro? Há casos em que sim, vê uma luz branca muito forte.
Será que vê cores? Há relatos de cegos que vêm uma mistura de vários tons.
Há ainda quem não veja rigorosamente nada.
Há doenças que impedem que a informação visual chegue ao córtex cerebral, pelo que esta ausência torne impossível 'visualizar' o que quer que seja.
Este é uma área muito interessante por explorar. Voltarei a este assunto brevemente, mas entretanto, deixo-vos um texto do prof. Hélder Bértolo, com quem já tive o prazer de privar e que tem feito investigação nesta área. Para além disto, apresenta também alguns dados sobre o sonho dos cegos.
Deixo o teaser: Se um cego (congénito) nunca viu, que imagens surgem nos seus sonhos?

Veja aqui.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Trabalhando a autonomia.



A autonomia de uma pessoa com deficiência visual (DV) é das coisas mais importantes e das que  dá mais satisfação em se trabalhar.
Ainda a propósito dos últimos textos que publiquei, sobre o estigma, um dos maiores estigmas que existem em relação à pessoa com DV é o de que ela é pouco autónoma e de que a falta de visão compromete a deslocação entre locais.
As aulas de Orientação e Mobilidade servem para acabarmos de vez com este estigma. Pomo-lo no bolso e depois deitamo-lo fora.
Para além de se aprender as técnicas de guia e de utilização da bengala branca (que noutro post irei abordar com maior atenção), estas aulas servem também para aumentar a autonomia da pessoa. Conseguir deslocar-se do ponto A ao ponto B em total segurança é o objetivo principal.
Hoje foi um dia particularmente feliz em relação a este assunto.
Ver a expressão da cara da B. ao conseguir, praticamente sem ajuda, sair da escola (zona de conforto), ir pelo passeio e chegar ao ATL. O caminho não é longo, mas tem alguns obstáculos, que foram ultrapassados com destreza e confiança.
A razão desse sucesso assenta principalmente em quatro fatores, a capacidade de orientação, e a força de vontade da pessoa com DV e a forma como o técnico de orientação ensina a técnica adequada a cada situação e a calma e a segurança que transmite a quem aprende.
Outro fator muito importante é a ausência de paternalismos. Sejamos francos, o mundo não é cor de rosa, nem se vai adaptar às pessoas com DV. São eles que têm de se munir com as ferramentas para o enfrentar e têm que ultrapassar os seus medos e as suas angústias.
Cada dia é uma vitória, cada percurso feito uma batalha ganha. Sabendo que no dia seguinte novas batalhas virão e só os mais preparados estarão prontos para a vencer.
O meu trabalho é colocá-los nas mais diversas situações e mostrar como sair delas. O resto virá com a sua atitude, a sua destreza e a forma como querem encarar o mundo.
Querem isolar-se e entrar no ciclo de vitimização que não leva a lado nenhum, ou preferem enfrentar o mundo e sair de cabeça erguida, com toda a dignidade que merecem, sabendo que vão passar dificuldades, mas também sabendo que irão ultrapassar as mesmas?
Brevemente algumas notas sobre o treino da bengala e técnicas de guia.
FMM


domingo, 25 de setembro de 2016

Estigma (Parte II)


Um dos perigos que o estigma pode trazer é a falta de interação social. O indivíduo estigmatizado tende a autoisolar-se e poder-se-á tornar uma pessoa desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e confusa.
Quando a interação se dá, porém, é quando as causas e os efeitos do estigma estão presentes. Neste caso o indivíduo estigmatizado poderá ter a sensação de não saber aquilo que os outros realmente pensam dele.
No caso da pessoa cega há muitos exemplos desta situação. O estigma que as pessoas muitas vezes têm para com o indivíduo com cegueira leva-os a terem reações e atos que só uma pessoa com uma grande aceitação e autoestima poderá suportar. Já alguns alunos meus se referiram ao facto de um grande número de pessoas se dirigirem a eles falando muito alto, como se eles tivessem problemas auditivos; ou mesmo mostrarem espanto por eles falarem.
Para os indivíduos ‘normais’ o que seria um ato perfeitamente expectável de outra pessoa, torna-se um feito extraordinário se for realizado por uma pessoa portadora de deficiência.
Uma das formas que os indivíduos estigmatizados encontraram para ultrapassar alguns dos constrangimentos já referidos é na procura de grupos de ajuda mútua. Estes grupos consistem em pequenos grupos sociais, normalmente dirigidos por um representante com o mesmo estigma. Para além dos encontros, estes grupos promovem também palestras que contam com oradores, considerados bem adaptados e socialmente aceites. Estes representam a sua categoria. Esta categorização é o grupo em si.
Depois de nos referirmos à forma como o estigmatizado interage com o ‘normal’, Erving Goffman lança o conceito de ‘informados’. Os ‘informados’ prestam apoio aos estigmatizados, uma vez que estão bem cientes da sua problemática. O estigmatizado pode agir sem defesas perante os ‘informados’, sem se envergonharem e sem autocontrolo. Os médicos, enfermeiros, terapeutas e professores são exemplos de pessoas ‘informadas’. Também os que se relacionam com o estigmatizado através da estrutura social (exemplo da mulher de uma pessoa cega) são considerados ‘informados’.
Segundo Goffman (1982) existem quatro modelos de socialização:
. estigma congénito – refere-se a pessoas socializadas dentro da sua situação de desvantagem, mesmo quando estão aprendendo e incorporando os padrões frente aos quais fracassam.
. capacidade de uma família se constituir numa cápsula protetora para o seu jovem membro. O jovem sente-se protegido, há controle de informação e o estigma aparece normalmente aquando da entrada no ensino público.
No caso de um cego congénito, este só saberá que não encaixa nos padrões ditos ‘normais’ numa fase posterior da sua vida.
"Creio que a primeira vez que realmente me dei conta de minha situação e a primeira dor profunda que ela me causou foi num dia, casualmente, quando estava na praia com o meu grupo de amigos do início da adolescência. Eu estava deitada na areia e acho que os rapazes e moças pensaram que eu estivesse dormindo. Um deles disse, então: 'Gosto muito de Domenica, mas nunca sairia com uma garota cega.' Não conheço nenhum preconceito que rejeite uma pessoa de maneira tão absoluta”. (in Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada, Goffman,1982, Brasil, Zahar Editores, p. 31)
. os indivíduos tornam-se estigmatizados numa fase avançada da vida. Neste caso estes têm dificuldade em se identificarem e tendem a autocensurarem-se.
Aquando da minha experiência como monitor de uma colónia de férias para alunos com deficiência visual da Direção Regional de Educação de Lisboa e utentes do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, pude conhecer adultos com cegueira recém-adquirida que afirmaram que passaram cerca de um ano em ‘luto’, onde parecia que a vida deles tinha acabado. Passado esse ano iniciaram um processo de reabilitação e ‘(re)aprenderam’ a viver.  A partir do momento em que conseguiram aceitar a sua nova ‘categorização’, a sua nova identidade, puderam iniciar um percurso de reabilitação de inclusão na sociedade de forma bem sucedida.
. indivíduos que inicialmente são socializados numa comunidade diferente, dentro ou fora das fronteiras geográficas da sociedade normal, e que devem aprender uma segunda maneira de ser, ou melhor, aquela que as pessoas à sua volta consideram real e válida.
Para o estigmatizado há dois tipos de relacionamento. Se encontra novos relacionamentos, estes vão vê-lo com os ‘defeitos’ que tem, em termos do que é expectável. Nos relacionamentos antigos, há uma ligação à conceção anterior daquilo que foi, e os indivíduos poderão não conseguir tratá-lo nem de uma forma neutra, formal, nem com uma aceitação total.
Tendo como assente que é muito importante a interação social entre estigmatizados e ‘normais’, a interação estigmatizado-estigmatizado também é muito importante, desde que não seja motivo de segregação.
O caminho certo está na inclusão das pessoas portadoras de deficiência visual na sociedade, admitindo contactos frequentes com pessoas com a mesma situação, mas não de forma exclusiva.

Não somos todos potenciais estigmatizados? Não damos constantes informações sociais aos que nos rodeiam? 
FMM

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Estigma (Parte I)



Quando ouvimos a palavra ‘estigma’ algo de negativo assalta-nos a mente, é uma palavra que acompanha a pessoa com deficiência, seja qual for.
Podemos ligá-la com outras: por exemplo, ‘identidade social’.
Quem sou eu? Onde me insiro? Qual o meu papel na sociedade? Como é que os outros me vêem? Como é que eu me vejo?
Temos que parar, as perguntas jorram e há que estancá-las.
Comecemos pelo conceito, os Gregos criaram este termo para se referirem a sinais corporais que não eram mais que evidências de algo extraordinário ou algo negativo sobre o status social vigente.
Hoje em dia o conceito mantém-se, apesar de não se dar ênfase à marca corporal, mas sim ao ‘problema’ que a pessoa tem.
A sociedade, tão marcada pelo individualismo, tende a categorizar os indivíduos, estabelecendo padrões comportamentais e atributos tidos como naturais dos membros dessa categoria. Trata-se da identidade social.
Erving Goffman (1982) fala-nos de dois tipos de identidade: a identidade social real e a identidade social virtual. A identidade social virtual é aquilo que esperamos de um determinado indivíduo dentro de um dado contexto; a identidade social real é aquilo que o mesmo indivíduo prova possuir. Quando há diferença entre as duas aparece o estigma, que traz conceitos de defeito, fraqueza e desvantagem.
O indivíduo é, assim, colocado numa nova categoria.
Existem três tipos de Estigma:
. deformidades físicas;
. culpas de carácter individual;
. tribais de raça, nação e religião.
No primeiro tipo, o estigma é devido a aparência física, com alterações daquilo que é considerado ‘normal’.
No segundo, o estigma é devido a questões de crença pessoal, de diversa ordem.
No terceiro, o estigma está assente na raça, nação e religião de um indivíduo. Espera-se um determinado comportamento conforme as situações acima citadas.
No que diz respeito à deficiência o estigma está centrado nas imperfeições, na diferença. No entanto, por vezes, e por razões históricas, atribui-se à deficiência aspetos sobrenaturais, como no caso das pessoas cegas. Observemos o caso apresentado por Goffman (1982):
 “Alguns podem hesitar em tocar ou guiar o cego, enquanto que outros generalizam a deficiência de visão sob a forma de uma gestalt de incapacidade, de tal modo que o indivíduo grita com o cego como se ele fosse surdo ou tenta erguê-lo como se ele fosse aleijado. Aqueles que estão diante de um cego podem ter uma gama enorme de crenças ligadas ao estereótipo. Por exemplo, podem pensar que estão sujeitos a um tipo único de avaliação, supondo ou o indivíduo cego recorre a canais específicos de informação não disponíveis para os outros.” (in Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada, 1982, Brasil, Zahar Editores, p.8)
Concluimos, então, que um indivíduo que não preencha tudo o que dele se espera, que fuja da ‘norma’ socialmente estabelecida, é um indivíduo estigmatizado.
Uma das características mais notórias no indivíduo estigmatizado é a necessidade de ser aceite. Essa necessidade leva-o a tentar corrigir essa ‘falha’. Goffman (1982) fala-nos em “Vitimização”.
O indivíduo estigmatizado vai tentar ultrapassar obstáculos que eram considerados inultrapassáveis para pessoas com a sua problemática. Por outro lado poderá utilizar o estigma como desculpa para eventuais fracassos.
É possível verificar que há muitas formas de se lidar com o estigma. Há outros indivíduos que vêem no seu sofrimento como que uma bênção secreta, na qual a sua experiência poderá servir como ajuda e ensinamento a outras pessoas.
Goffman escreve:
 "Isso levaria imediatamente a se pensar que há muitos acontecimentos que podem diminuir a satisfação de viver de maneira muito mais efetiva do que a cegueira. Esse pensamento é inteiramente saudável. Desse ponto de vista, podemos perceber, por exemplo, que um defeito como a incapacidade de aceitar amor humano, que pode diminuir o prazer de viver até quase esgotá-lo, é muito mais trágico do que a cegueira. Mas é pouco comum que o homem com tal doença chegue a aperceber-se dela e, portanto, a ter pena de si mesmo." (in Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada, 1982, Brasil, Zahar Editores, p. 13)
Este episódio lembra-me algo que um ex-aluno cego me disse, referindo-se a questões de relacionamentos, de amizade e amorosos. Ele disse-me que, ao contrário de quase todos os seus amigos, ele não ligava ao aspeto físico das pessoas e que dava realmente importância aquilo que as pessoas eram, na sua essência, no seu interior e não na sua aparência exterior.
Este é um exemplo em como uma aparente limitação, vista aos olhos daquilo que a sociedade tem como padrão, se torna uma vantagem.
FMM


quinta-feira, 15 de setembro de 2016

A bondade aos olhos de quem não vê...

No outro dia, no GADV, numa das muitas conversas que vou tendo com os utentes do gabinete, onde se partilham as alegrias e as angústias, o sr. A.B.(baixa visão grave) quando se referia ao facto de agora já não ver tão bem como antigamente e numa perspectiva de acentuar os aspetivos positivos da situação, minimizando os negativos, disse o seguinte:
"Agora vejo melhor a bondade humana, que antes me passava despercebida. Perdi umas coisas, mas ganhei outras."
Está aqui a prova de que a famosa frase de Saint Exúpery n' O Principezinho não é só uma 'frase feita' que repetimos muitas vezes ao enjoo nas redes sociais. Ela acarreta algo de muito verdadeiro e merece uma reflexão.
Vamos fazê-la? Feche os olhos e veja o essencial.
FMM

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A minha história...

Fernando Miguel Martins é natural de Torres Vedras, nasceu no dia 29 de setembro de 1974. Licenciado em Ensino de Inglês e Alemão pela Universidade de Aveiro, começou a dar um novo rumo à sua vida profissional há cerca de 10 anos começando o seu trabalho no apoio a crianças e jovens com deficiência visual. Frequentou ações de formação neste âmbito, nomeadamente na grafia braille e na orientação e mobilidade; fez um curso de Educação Especial (visão) na Escola Superior de Educação de Setúbal; foi monitor da colónia de férias para utentes do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos e alunos da Direção Regional de Educação de Lisboa. Em 2011 tirou uma pós-graduação em Educação Especial (domínio visual) no Instituto Piaget de Almada, onde, como projeto final, idealizou o Gabinete de Apoio à Deficiência Visual do concelho de Torres Vedras (GADV) que, apresentado à Câmara Municipal de Torres Vedras, tem estado em atividade desde então, prestando apoio a cerca de 30 utentes. Atualmente é professor de Educação Especial, no domínio visual, do Agrupamento de Escolas Padre Vítor Melícias e participa ativamente nas atividades do GADV, sendo o responsável pela área da Orientação e Mobilidade. No seu ‘Num piscar d' olhos…’ propõe-nos uma viagem pelo mundo, nem sempre compreendido, da deficiência visual, onde serão abordados temas como o estigma, a mobilidade, o sentimento e o luto, a sobrevivência, o mundo do trabalho, os relacionamentos, a perda de visão e os problemas visuais.
Em Lisboa está a trabalhar-se muito bem nas questões da mobilidade e acessibilidade.
É um excelente exemplo daquilo que deve ser feito e uma lição para o resto do país.
Os técnicos da Câmara Municipal de Torres Vedras já reuniram com os seus homólogos de Lisboa e esperamos com entusiasmo o resultado desse encontro.
As coisas vão ter que mudar.
As pessoas com mobilidade reduzida merecem ter acesso às passadeiras e aos locais públicos e esse acesso tem que ser feito em segurança.
Acompanhe o trabalho da Câmara Municipal de Lisboa aqui:

https://www.facebook.com/acessibilidadepedonal/?fref=ts

Torres Vedras irá tornar 35 passadeiras acessíveis para cidadãos cegos e com baixa visão. Tem sido possível observar que a maior parte das passadeiras do centro da cidade de não têm um fácil acesso. Algumas delas nem sequer têm qualquer tipo de rebaixamento, pelo que para uma pessoa com problemas visuais torna-se impossível saber onde se encontram. Esta situação compromete a sua segurança. Com esta alteração todas as pessoas irão deslocar-se de forma mais segura. Acresce que é também um passo positivo na sensibilização de toda a comunidade para os problemas de acessibilidade que as pessoas com deficiência visual e motora têm. Vamos acompanhar este projeto com muita atenção.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Parte III

O primeiro dia de Joana

O coração batia a mil à hora. João estava num estado tal que pensou que ia desmaiar ali, sozinho naquele corredor do hospital, enquanto desesperava por notícias do outro lado da porta. Tinha sonhado tanto com aquele momento, mas nada do que sonhara estava a acontecer.
O silêncio que vinha da sala de partos era difícil de suportar.
Só queria ouvir o choro da Joana, imaginava-a a ser colocada junto aos seios da mãe e a depois a acalmar-se naquele reconhecimento mútuo, na partilha dos cheiros, na doce melodia da voz materna. Mas não havia choro, não havia nada, só a angústia solitária de um pai à espera de notícias.
Quando a porta finalmente se abriu, reconheceu de imediato o médico com quem já tantas vezes se havia cruzado, mas a elegância, a calma, as mãos incrivelmente limpas e delicadas que sempre apresentara não passava de uma miragem. O médico estava visivelmente cansado, trazia um lenço ensopado na mão direita com o qual tentava limpar algumas gotas de suor que teimosamente nasciam no meio da sua testa. Não disse uma palavra, suspirou apenas, mas João percebeu que era um suspiro de alívio, de quem tinha vencido uma batalha. Num ápice, precipitou-se sobre a porta e espreitou e viu Alice prostrada na marquesa, também ela perdera aquele brilho que só as mulheres grávidas têm.
João procurou na cara de Alice algo que o pudesse animar.
Onde estaria Joana? Porque não ouvira qualquer choro?

Joana repousava tranquilamente na incubadora. Nascera demasiado cedo para conseguir suportar sozinha a vida dura e desprotegida fora do ventre.

Ambas estavam relativamente bem. Alice recuperava das dores e ansiava por ver Joana. Nem sabia muito bem o que tinha acontecido. No meio de toda aquela confusão, dores lancinantes, médicos e enfermeiros à sua volta, nem deu bem conta do que tinha acontecido. As dores anestesiaram-lhe os pensamentos e foi impossível ter qualquer laivo de lucidez nas horas anteriores ao nascimento de Joana.

A menina-um-quilo-de-gente estava deitada na incubadora, precisava desse ambiente controlado. Com tão pouco tempo de gestação era importante manter os níveis de temperatura e humidade semelhantes ao que tinha na barriga da mãe. No fundo, o seu cérebro, os músculos, os pulmões ainda não tinham chegado à maturação necessária.

Quando Alice finalmente pôde levantar-se, apressou-se para ver a sua filha. A primeira memória que tem de Joana foi a de ver uma mão minúscula a segurar o dedo mindinho do pai que, emocionado, tinha encostado a sua cabeça ao cubículo para estar o mais próximo possível da sua menina. Alice estava tão cansada que nem tinha força para chorar, embora lhe apetecesse tanto, mas tanto. Aproximou-se de João, segurou-lhe a mão e ficou a olhar para aquele milagre da vida.

João e Alice sabiam que os meses seguintes seriam complicados e que Joana poderia vir a ter graves problemas de saúde, mas naquele momento nada disso interessava, era a sua menina que estava ali, à sua frente, era a corajosa Joana que quisera nascer, assim, muito antes do tempo previsto.
Apesar do sofrimento a que foi sujeita, os tubos que a alimentava, o mundo hostil que encontrara, Joana esboçava um sorriso traquina. Esse sorriso iria acompanhá-la sempre, todos os dias da sua vida, mesmo naqueles em que ela teria todos os motivos para não o fazer.
A sua força de viver e o seu sorriso contagiante haveriam de ser essenciais para suportar tudo aquilo que a pequena Joana teve que passar.
A prematuridade trouxera problemas com os quais teve que viver todos os segundos da sua vida.

Da sua vida tão difícil.
Parte II

O nascimento de Joana
Quando Alice sentiu aquela dor forte na zona abdominal estava longe de imaginar que, dentro dela, começara a formar-se um novo ser. João e Alice haviam há muito desistido da ideia de serem pais. Ela acreditava que Deus reservava-lhe muitos planos, mas ser mãe não era um deles. Ele não acreditava em nada, simplesmente, aceitara a situação.
Gastaram todas as suas economias em tratamentos de fertilidade, com idas desesperadas a Badajoz - às vezes de dois em dois dias - ,  injeções diárias para haver formação de mais do que um óvulo, punções várias,  com todo o desgaste emocional que isso acarretava e com o sacrifício físico de Alice.
O corpo esbelto de outrora não passava de uma miragem. Estava de rastos.
Malditos tratamentos, fizeram-na engordar na mesma proporção da sua esperança.
A meio do processo já João tinha deixado de acreditar. Mas Alice não, até ao fim do último tratamento acreditou sempre.
Até que chegou o momento de parar, faltavam-lhes o dinheiro e a força para continuar. Não acreditavam que algum dia pudessem ser pais.
Quando nada o fazia prever, foram surpreendidos pela notícia "A senhora está grávida!" do médico que a assistia naquele dia.
As lágrimas que caíam continuamente pela cara de Alice salgaram-lhe a boca e ela saboreou o momento, num misto de alegria e pânico, pois, apesar de manter alguma jovialidade, os seus 42 anos de idade pesavam-lhe e já não se sentia tão bem como há uns anos atrás.
João gritou de alegria, em silêncio. No fundo, ser pai era um desejo antigo e o facto de não o poder ser, secretamente, atentava contra a sua masculinidade.
O tempo foi passando, a alegria de saber que iriam ter uma menina atenuou as dores de Alice, numa gravidez de risco, onde as idas à Alfredo da Costa eram frequentes.  João andava nervoso, toda a vida se preparara para isto, mas naquela altura parecia que vivia numa espécie de limbo, pouco ligado à realidade.
Depois de aconselhados a fazer a amniocentese, puseram-se a caminho de Lisboa. A viagem não era longa mas o carro, já desgastado por tantas viagens a Espanha, pedia reforma. O dia acordara muito cinzento e chuvoso, e as notícias da manhã mostravam o caos que as ruas da capital se tinham transformado. Mas isso não demoveu o casal. Saíram bem cedo de casa e lá foram. Ficaram, naturalmente, retidos no trânsito. A trovoada e as chuvas fortes eram assustadoras e não foi preciso ser muito perspicaz para perceber que nunca conseguiriam chegar a horas do exame. Levada pela fúria divina daquelas águas e pelo som demoníaco da trovoada, Alice começou a pensar se não seria melhor não fazer a amniocentese. A espera no carro fê-la refletir sobre tudo o que se tinha passado naquelas últimas semanas, e o medo tomou conta dela. Não queria fazer algo que pudesse pôr em risco a vida da sua bebé. Naquele êxtase provocado pelo sono das noites mal dormidas e pelo som dos trovões e da água, Alice tomou uma decisão: "João, volta para casa!"
Alice teve uma gravidez muito atribulada. As dores foram uma constante e a bebé dava sinais de querer nascer mais cedo do que o suposto.
Decidiram dar-lhe o nome de Joana. Ainda no ventre, Joana mostrava já a sua enorme curiosidade e agitação. Queria ver o mundo, estar confinada a uma bolsa de líquido era demasiado pouco para ela. Esse desejo era tão grande que, às 27 semanas de gestação, Joana decidiu vir ao mundo.
Alice recuperava de mais uma noite mal dormida, deitada no sofá e sentiu uma dor lancinante no ventre. Era uma dor insuportável e ela percebeu que algo de estranho estava a acontecer. Sem demoras chamou uma ambulância e ligou ao marido. Sentiu que chegara a hora.
Alice recorda-se muito pouco do que aconteceu nesse dia. As dores toldaram-lhe o raciocínio.
De facto, Joana estava preparada para nascer e não havia nada que o pudesse impedir. Raio da miúda, até no nascimento mostrou o seu temperamento. A verdade é que, com 27 semanas de gestação, Joana e Alice tiveram que lutar pela vida.
Alice estava em pânico, ninguém a preparara para as dores que estava a sentir. As contrações sucediam-se e ela fazia como nos filmes - ar dentro, ar fora, ar dentro, ar fora - porque não tivera tempo de ir às aulas de preparação para o parto. De uma forma muito descontrolada lá conseguia respirar, mas gemia com cada inspiração que fazia.
A hora aproximava-se, o médico não conseguia disfarçar o seu nervosismo e sussurrava às enfermeiras que o foco estava a desaparecer, ao mesmo tempo que lhe escorriam gotas de suor na testa.
Alice estava anestesiada pela dor, olhou para o lado ao mesmo tempo que João era empurrado porta fora da sala de partos, e num assombro de força interior, segurou-se ao ferros que limitavam a marquesa e puxou-os com tanta força, naquele último esforço, naquele tudo-ou-nada que só uma mãe entende, que os seus braços enegreceram de dor.

Fizera tudo... tudo!

Aquele seria o último pôr do sol que iria ver no resto da sua vida...

Parte I

Aquele seria o último pôr do sol que iria ver no resto da sua vida...
Quando Joana acordou em sobressalto, procurando exasperadamente pelos seus óculos, esquecendo-se por completo de onde os havia posto, sentiu que algo não estava bem. A névoa que sempre lhe cobrira os olhos adensara-se e, por muito que ela tentasse, não estava a conseguir ver como no dia anterior. Abriu e fechou os olhos, num movimento rápido, na esperança de que, na vez seguinte, se dissipasse aquela cortina.
Continuava sem saber dos óculos. Deambulou ébria pelo quarto, tropeçando aqui e ali. O espaço que conhecia de olhos fechados era-lhe estranho naquele momento, a ansiedade tomava conta do seu peito e a respiração era tão veloz que conseguia ouvir cada batida do seu coração.
Precisava de se acalmar, calma... calma... toda a sua vida fora passada de médico em médico, em busca de respostas. O que lhe faltava de visão sobrava-lhe em perceção e intuição.  Mas havia algo de diferente desta vez.
O seu corpo começou a tremer. Aquilo por que sempre receara toda a vida acabara de acontecer: estava cega. CEGA!  E agora?
Muitas imagens e palavras passavam pela sua cabeça. Era o "A sua visão está a piorar de dia para dia" do médico; era o "Vamos filha, não há-de ser nada. Deus vai ajudar-te. Confia." da mãe; era o "A bengala é um instrumento essencial para quem não vê. Pega-se desta forma." do técnico de orientação e mobilidade; era o "Tu és forte. Nada te vai abalar." dos amigos. Era tudo e mais alguma coisa e não era nada.
Mas, o que sabiam eles?
Quem eram eles para sequer imaginar o que ela estava a sentir?
Começou a formar-se um grito tão grande dentro de si, de tamanho tal, que nem um murmúrio lhe saiu.
Joana sentia que a sua vida acabara ali, naquele quarto, sozinha. No fundo ela sabia que este dia acabaria por chegar, mas a esperança de que, um tratamento inovador, uma nova descoberta ou um milagre tecnológico, pudessem descobrir um tratamento para os seus olhos,  permitiam que se mantivesse confiante. Essa ideia acompanhou-a desde sempre, desde que se lembra de pensar.
Toda a sua luta, as dezenas de consultas e tratamentos, as injeções dolorosas, tudo, pareciam cair por terra naquele momento.
Aquele embate (des)esperado com a realidade veio revelar que Joana não era aquela pessoa forte que todos pensavam conhecer. No fundo, naquele momento, sentia-se fraca, mal conseguia respirar e o seu corpo teimava em não se manter de pé. Perdera todas as suas forças.
A custo saiu da cama no dia seguinte, abriu todas as portas e janelas e o som da natureza entrou avidamente pela casa toda. Fez-lhe bem. O sol nascera outra vez e os raios que incidiam na sua cara ruborizaram-na e aquele calor confortou-a de uma maneira que não sabe explicar.
Queria esquecer tudo o que se tinha passado no dia anterior. Num piscar de olhos a sua vida mudara e uma pergunta assombrava-lhe a cabeça, como uma insónia incessante: E agora?
As respostas chegavam-lhe de todos os lados, mas Joana não acreditava numa única delas. Era demasiado perspicaz para perceber que tudo o que ouvia não passava de frases feitas de circunstância, piedade fútil, estereótipos, promessas de cura, incompreensões, maldades e incertezas.
A resposta só podia estar num único lugar, num sítio que só ela podia encontrar, sem mapa, sem chaves nem 'abre-te sésamos'. Começou a imaginá-lo, um local lindo, muito verde, junto ao mar, com caminhos estreitos e árvores que escondem segredos, onde os carros não passam e as pegadas na terra são difíceis de encontrar. Esse caminho levava Joana ao local onde tinha visto o pôr do sol pela última vez. Era a sua última memória visual. Lembrava-se também de sentir o calor na sua face e a pele a ficar mais fresca à mesma velocidade que o sol adormecia na linha do horizonte. Deixou-se ficar nesse pensamento, talvez uns minutos, talvez uma eternidade.
As respostas às suas perguntas haviam de estar por ali, naquele lugar dentro de si, nos seus pensamentos, na sua força, na sua vontade de fazer aquilo que parecia impossível até ser feito. Ela nunca deixou de procurar os seus óculos.
São assim os grandes Homens. É assim a Joana.
A história da Joana não é real, mas não podia ser mais verdadeira.