Parte I
Aquele seria o último pôr do sol que iria ver no resto da
sua vida...
Quando Joana acordou em sobressalto, procurando
exasperadamente pelos seus óculos, esquecendo-se por completo de onde os havia
posto, sentiu que algo não estava bem. A névoa que sempre lhe cobrira os olhos
adensara-se e, por muito que ela tentasse, não estava a conseguir ver como no
dia anterior. Abriu e fechou os olhos, num movimento rápido, na esperança de
que, na vez seguinte, se dissipasse aquela cortina.
Continuava sem saber dos óculos. Deambulou ébria pelo quarto,
tropeçando aqui e ali. O espaço que conhecia de olhos fechados era-lhe estranho
naquele momento, a ansiedade tomava conta do seu peito e a respiração era tão
veloz que conseguia ouvir cada batida do seu coração.
Precisava de se acalmar, calma... calma... toda a sua
vida fora passada de médico em médico, em busca de respostas. O que lhe faltava
de visão sobrava-lhe em perceção e intuição. Mas havia algo de diferente desta vez.
O seu corpo começou a tremer. Aquilo por que sempre
receara toda a vida acabara de acontecer: estava cega. CEGA! E agora?
Muitas imagens e palavras passavam pela sua cabeça. Era o
"A sua visão está a piorar de dia para dia" do médico; era o
"Vamos filha, não há-de ser nada. Deus vai ajudar-te. Confia." da
mãe; era o "A bengala é um instrumento essencial para quem não vê. Pega-se
desta forma." do técnico de orientação e mobilidade; era o "Tu és
forte. Nada te vai abalar." dos amigos. Era tudo e mais alguma coisa e não
era nada.
Mas, o que sabiam eles?
Quem eram eles para sequer imaginar o que ela estava a
sentir?
Começou a formar-se um grito tão grande dentro de si, de
tamanho tal, que nem um murmúrio lhe saiu.
Joana sentia que a sua vida acabara ali, naquele quarto,
sozinha. No fundo ela sabia que este dia acabaria por chegar, mas a esperança
de que, um tratamento inovador, uma nova descoberta ou um milagre tecnológico, pudessem
descobrir um tratamento para os seus olhos,
permitiam que se mantivesse confiante. Essa ideia acompanhou-a desde sempre,
desde que se lembra de pensar.
Toda a sua luta, as dezenas de consultas e tratamentos,
as injeções dolorosas, tudo, pareciam cair por terra naquele momento.
Aquele embate (des)esperado com a realidade veio revelar
que Joana não era aquela pessoa forte que todos pensavam conhecer. No fundo,
naquele momento, sentia-se fraca, mal conseguia respirar e o seu corpo teimava
em não se manter de pé. Perdera todas as suas forças.
A custo saiu da cama no dia seguinte, abriu todas as
portas e janelas e o som da natureza entrou avidamente pela casa toda. Fez-lhe
bem. O sol nascera outra vez e os raios que incidiam na sua cara ruborizaram-na
e aquele calor confortou-a de uma maneira que não sabe explicar.
Queria esquecer tudo o que se tinha passado no dia
anterior. Num piscar de olhos a sua vida mudara e uma pergunta assombrava-lhe a
cabeça, como uma insónia incessante: E agora?
As respostas chegavam-lhe de todos os lados, mas Joana
não acreditava numa única delas. Era demasiado perspicaz para perceber que tudo
o que ouvia não passava de frases feitas de circunstância, piedade fútil, estereótipos,
promessas de cura, incompreensões, maldades e incertezas.
A resposta só podia estar num único lugar, num sítio que
só ela podia encontrar, sem mapa, sem chaves nem 'abre-te sésamos'. Começou a
imaginá-lo, um local lindo, muito verde, junto ao mar, com caminhos estreitos e
árvores que escondem segredos, onde os carros não passam e as pegadas na terra
são difíceis de encontrar. Esse caminho levava Joana ao local onde tinha visto
o pôr do sol pela última vez. Era a sua última memória visual. Lembrava-se
também de sentir o calor na sua face e a pele a ficar mais fresca à mesma
velocidade que o sol adormecia na linha do horizonte. Deixou-se ficar nesse
pensamento, talvez uns minutos, talvez uma eternidade.
As respostas às suas perguntas haviam de estar por ali,
naquele lugar dentro de si, nos seus pensamentos, na sua força, na sua vontade
de fazer aquilo que parecia impossível até ser feito. Ela nunca deixou de
procurar os seus óculos.
São assim os grandes Homens. É assim a Joana.
A história da Joana não é real, mas não podia ser mais
verdadeira.
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