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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Não basta pôr uma venda nos olhos...

Era uma vez um menino chamado António que era cego. Tinha perdido a visão há alguns anos e sempre se lembra de ter sido cego. Na sua memória guardava apenas algumas imagens, das faces da sua família mais chegada, das cores e pouco mais. Como qualquer outro menino, António andava na escola. O que para a maioria dos meninos era tarefa fácil, para António era um desafio. Para um menino cego, a autonomia e a autoconfiança não era garantida, conquistava-se, dia-a-dia, a pulso, com dificuldade, com passos pequenos mas seguros. Para isso, o menino contava com muitas ajudas, tinha uma senhora que o ajudava nos intervalos, porque nem sempre havia colegas disponíveis para o fazer (os meninos nas escolas básicas são muito ocupados e desaparecem nos intervalos, vão à sua vida - já referi este assunto no blog). Para além disso, tinha professores que o acompanhavam em quase todas as aulas. Haveria de haver um dia em que António seria um jovem completamente autónomo nos estudos e teria a destreza no Braille e a capacidade de registar tudo o que se passava nas aulas e aí sim, não precisaria de acompanhamento. Apesar de todas as dificuldades o menino António era um bom miúdo, com sentido de humor, muito confiante e agradável com todos. Quem tivesse o cuidado e a sorte de o conhecer melhor, conseguiria ver que, apesar de todas as dificuldades que tinha, era um miúdo destemido, adorava conhecer coisas novas e nunca virava a cara a novas aventuras.
Como qualquer menino cego o grande problema dele era a dificuldade que tinha em arranjar amigos. Num mundo a 200 à hora, onde a imagem, o parecer e a superficialidade pareciam ser dominantes, um menino como ele sentia-se deslocado, estranho, às vezes, quase impotente para ultrapassar as barreiras criadas pelas pessoas. Sim, por muito que se pense que o maior problema de um cego possam ser as barreiras arquitetónicas, a falta de acessos aos locais, a falta de sinalização de passadeiras, etc., o maior problema é a falta de sensibilidade, o preconceito e o estigma.
O António era cego, mas via e sentia essa falta de sensibilidade e até mesmo alguma crueldade por parte dos meninos da sua idade, da sua turma. Ele sabia que não podia ser amigo de todos. Ser cego não implicava que toda a gente gostasse dele. Também não queria que sentissem pena dele. Nem pensar.
O mundo era um local louco naqueles tempos. Os valores estavam todos invertidos. Não se respeitavam as diferenças e os meninos que estavam próximos do António não o respeitavam, não percebiam porque é que ele tinha tantas ajudas e por que é que as suas conquistas eram festejadas tão efusivamente. Os corações de alguns deles não tinham compaixão e a sua inveja crescia na mesma proporção da sua altura. Alguns deles, sabe-se lá porquê, também queriam ter essa atenção, também queriam ter professores que os acompanhassem nas aulas, ou uma senhora que os lembrasse que tinham que comer nos intervalos ou não os deixassem ficar sozinhos quando mais ninguém os queria acompanhar.
Esse sentimento fazia com que, por vezes, fossem cruéis com o António. É incrível como algumas atitudes podem estragar meses de trabalho no que diz respeito a autonomia, autoconfiança, e bem estar de um menino cego.
Nesse tempo só se dava importância aquilo que era visível. Observavam-se os privilégios, mas ignoravam-se as causas. Esses sentimentos negativos impediam que se visse mais além, que se olhasse a pessoa e se entendesse. O menino António não era um privilegiado. O menino António estava numa escola onde lhe eram dadas oportunidades de crescer, de se preparar para o futuro, de ganhar competências para sobreviver num mundo competitivo.
Será que os colegas que desejavam ter os mesmos "privilégios" estariam dispostos a colocar-se na mesma situação do António? NÃO!
Será que o António abdicaria de todos os "privilégios" para ter nem que fosse um pouco de visão que permitisse ser mais autónomo na escola? SIM!

Felizmente vivemos  numa sociedade moderna, onde os direitos dos meninos com deficiência visual (ou qualquer outra) estão salvaguardados. As crianças sabem respeitar as diferenças e apoiam os colegas que têm mais dificuldades. Quando um desses meninos consegue uma vitória, seja numa atividade da sala de aula, seja num torneio de uma qualquer modalidade, essa vitória é festejada como se fosse de todos. Hoje em dia, apesar de não termos de ser amigos de toda a gente, e não termos de ser amigos de um menino só porque ele tem uma deficiência qualquer, sabemos respeitar a condição do outro, agarramos no 'd' da palavra deficiência, mandamos fora, e transformamos em eficiência. Nos intervalos, em vez de fingirmos que não estamos ao lado do António, fazemos notar a nossa presença, e perguntamos se quer ir dar uma volta connosco. Olhamos para as ajudas que ele tem e compreendemos e ficamos felizes por estarmos numa escola que lhe dá essas condições. Nunca se sabe se não poderá acontecer algo semelhante connosco e não sermos nós a necessitar dessa ajuda, mesmo que temporária.
É bom viver num mundo assim.

FMM

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