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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Carta ao Zé

Caro Zé, esta carta é para ti. Sei que nada do que vou escrever aqui poderá aliviar a dor que estás a sentir neste momento. Além da dor física pela qual estás a passar devido ao herpes zoster que teimosamente decidiu atacar os teus olhos, há também a dor psicológica, o medo, o descontrolo, a sensação de que se está a perder tudo aquilo que anteriormente tínhamos como adquirido. Não nos conhecemos mas uma amiga em comum trouxe-te aqui, ao meu blog. Decidi escrever-te esta carta publicamente porque, ao contrário do que estás a pensar neste momento, há muitos Zés no mundo, no nosso país, muitas vezes até mesmo bem perto de nós. Assim, esta carta não é só para ti, mas para todos os que neste momento possam estar a passar por uma situação semelhante. 
Sei que de uma forma abrupta e repentina perdeste grande parte da visão que tinhas. A doença avançou sem avisar e apanhou-te desprevenido. Ninguém está preparado para uma coisa destas. Estás a passar por um processo que é comum a muitas pessoas que têm o mesmo problema. Eu conheço algumas. Sei que neste momento a esperança num tratamento eficaz já não é muita e que aquela fé e a esperança começam a esmorecer. Acredita que essa esperança e essa fé nunca acabam. Não deve estar muito longe dos 100% as pessoas de baixa visão ou cegas que, no fundo, acreditam que amanhã irá aparecer um tratamento inovador que as fará ver melhor, ou tornar a ver. Têm todas as razões para isso. Com o avanço da tecnologia e toda a investigação que tem sido feita nesse sentido (inclusive em Portugal, através da Fundação Champalimaud, por exemplo) é expectável que num futuro próximo possa haver cura ou tratamento para algumas das doenças oculares mais comuns. 
Mas antes desses tempos de esperança e de reabilitação, há um período muito complicado, o qual deves estar a passar neste momento. No meu trabalho com os utentes do GADV (Gabinete de Apoio à Deficiência Visual) um dos temas recorrentes das nossas conversas e que têm uma transversalidade impossível de ignorar, é o facto de todos eles terem passado por um período de 'luto'. Esse período caracteriza-se primeiro por uma negação da real situação médica. A pessoa não aceita que perdeu, ou está a perder a visão. Até um determinado ponto a pessoa acredita que aquilo não está a acontecer com ela e que logo logo consegue recuperar e tudo não passou de um susto. Quando as coisas demoram a melhorar e o prognóstico não é o mais animador, a pessoa tende a auto-culpabilizar-se ou a culpabilizar os que o rodeiam pela sua situação. Esta situação é muito desgastante, há graves conflitos interiores e também sociais. A pessoa muda a sua atitude perante a sociedade e tende a isolar-se. De qualquer forma a perda de visão estimula esse isolamento. É a ideia de que se já não consigo sair de casa sozinho, então não saio mesmo, entre outras coisas. Todo o papel social da pessoa sofre uma alteração. Desculpa Zé, se já estou a ir longe demais. Noutros posts falei aqui sobre o estigma. Esse estigma cai agora como um peso quase insustentável. A pessoa tende a sentir-se inútil e tem problemas em lidar com as outras pessoas, tanto as estranhas como aquelas que lhe são mais próximas. 
Não te conheço Zé, mas vou arriscar que estás naquela fase em que consideras esta carta uma perda de tempo. Pensas que isto não é para ti. Seja como for, isso não me detém. 
O luto é o deserto. É atravessá-lo, assim mesmo, sem mais nada. Por muitos amigos que se tenham, por muito que a família esteja presente, é sempre um percurso solitário, ninguém poderá percorrê-lo por ti. Não é justo falar-te do deserto e não referir o que está do lado de lá. Depois de atravessá-lo há todo um mundo por explorar. Não queria estar aqui com lugares comuns e frases de incentivo dos livros cor de rosa. A frase de 'O Principezinho' que diz que o 'essencial é invisível aos olhos' é muito bonita, mas é para quem vê. Não me posso pôr na tua pele porque, felizmente, vejo muito bem. Também não posso dizer que sei pelo que estás a pensar; não, não sei. O que te posso dizer é aquilo que tenho estudado e observado nas pessoas que acompanho no gabinete. Felizmente tenho lá pessoas com muita força, que já passaram (ou estão a passar; algumas nem nunca vão deixar de passar) pelo 'luto' e que tentam ultrapassar as dificuldades e viver da melhor forma possível com o problema visual que cada um tem. Não é fácil, há muito a fazer. Primeiro tem que haver uma transformação interna. A aceitação da condição é um passo importante (aceitar não é deixar de acreditar no tratamento ou na cura), depois é encontrar forças para fazer a reabilitação. Como o nome indica a reabilitação vai fazer com que a pessoa readquira a possibilidade de fazer o que fazia antes (não tudo, naturalmente) mesmo tendo problemas visuais. Nesta fase a pessoa deve dar-se a essa possibilidade e dar a oportunidade aos outros de ajudarem. Há instituições que sabem o que fazem e fazem um trabalho espetacular, como o Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, em Lisboa (na reabilitação), a APEDV (nas questões da empregabilidade) e a ACAPO (numa perspetiva mais abrangente).
O que está do outro lado do deserto vai sempre depender da pessoa que o percorrer. É a força interior da pessoa que vai definir isso.
A carta já vai longa e quero só deixar aqui um exemplo de uma pessoa que cegou em idade adulta, devido a diabetes. Nunca mais esqueci as palavras dela. Disse que, quando cegou, pensou que tinha morrido. "Eu morri ali. Depois inscrevi-me no centro (Nossa Sra. dos Anjos) e reaprendi a viver". Esta senhora é um exemplo daquilo que referi. Ela atravessou o seu deserto e estava ali, num grupo de 40 pessoas a dar o seu testemunho e o seu incentivo. Ainda por cima vinha de uma aldeia bem do interior de Portugal. Nunca tinha visto mar e estava numa colónia de férias na qual eu era monitor. No dia em que fomos fazer jogos na praia, pediu-me para ir ao mar. Queria sentir as ondas a bater nas pernas. O mar não estava muito convidativo, mas ela foi tão insistente, puxou-me tanto para entrarmos cada vez mais, que, a certa altura, veio uma onda mais forte e enrolou-nos completamente. Havias de ver a felicidade dela ali, comigo, toda molhada, numa mistura de água salgada e areia. Talvez esteja aí aquilo que estou a tentar transmitir mas sem o escrever, porque só tu é que poderás encontrar e o que quer que escreva vai parecer estúpido, simplesmente porque não sou eu, és tu. Só tu sabes. 
Talvez o segredo seja esse, conseguir ser feliz com uma onda e montes de areia na cara. Quem sabe?
Esta carta já vai mesmo muito longa. Talvez a maior parte das pessoas que a abriu não vai lê-la até ao fim, mas tu vais, mesmo pensando que ela não é para ti. Se calhar não é mesmo. Só tu saberás.
Um grande abraço Zé, estou por aqui e muita gente está por aí. 
Tu é que sabes.
FMM

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